Querido Pai,
Deixaste-me aqui sozinho nesta terra de loucos faz tanto tempo... Obrigado por de vez em quando me visitares, e por me ouvires sempre que quero falar contigo.
Conheci uma rapariga há uns meses, e agora moramos juntos. Havias de gostar dela, pai. É alegre e espevitada, e muito meiga. Às vezes lembra-me de ti. Às vezes lembra-me a mãe. Espero que gostes dela, porque eu gosto.
No trabalho vai tudo bem, ouço rumores que vai vagar um lugar lá na direcção, a ver se tenho sorte. Ou como tu dirias, a ver se me esforço mais um pouco para o conseguir. Ando a tirar um curso nos tempos livres, para ver se aprendo mais qualquer coisinha, porque senão daqui a pouco sou ultrapassado por um miúdo qualquer que apareça por aí.
As coisas não mudaram muito desde que partiste, a musica continua a ser barulho, a televisão só passa americanices, e estamos todos a andar uns contra os outros, como era antes.
Espero que estejas bem e que gostes disso por aí. Talvez daqui a uns tempos te vá visitar.
Um abraço,
o teu filho.
Pai,
Deixo-te esta carta para que não percas tempo à minha procura. Se calhar nem devia, porque provavelmente não me irás procurar de qualquer forma.
Saí de casa porque há seis meses que cada vez que te vejo, penso como poderás ser meu pai, ou eu teu filho. Como podes tomar essas atitudes, como podes ser assim.. E ainda mais irritante, como toda a gente te adora, e, pior que isso ainda, como eu sei que não te conhecem. Não como eu.
Devo pelo menos agradecer-te por não me teres tirado o tecto, por não me teres deixado morrer à fome, e por me teres ensinado o que ainda achavas certo quando eu era novo.
Se algum dia quiseres o reembolso de tudo o que gastaste comigo, manda uma factura para a minha morada nova.
Se não fosse pela mãe, o que me teria acontecido desde aquele tempo... Nem sei como ela aguenta contigo... Deve ter feito muito mal noutra vida, para agora se penitenciar assim.
Parto assim, sem te pedir mais nada senão que não me lembres que existes. E que não te lembres que existo. Finalmente podes dizer, em verdade, que não tens filho. Eu, o meu pai morreu há muito tempo.
Até nunca,
o miúdo que andava por aí.
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5 comments:
É interessante ver o contraste...em ambos os casos a pessoa perde o pai, numa delas involuntariamente e noutra por vontade própria... O que será pior? Seja como for, sinto muito por ambos...
Muito bom **
Não sei bem o que dizer. Deixaste-me sem palavras.
O meu pai faz anos na próxima 2ª feira. Se calhar devia escrever-lhe uma carta.
Curioso, a mim dá-me mais a sensação que no primeiro caso a carta está a ser escrita pós-morte. Mas isto deve ser de olhar para a minha mesa e não conseguir ver o tampo...
Lindo.
O contraste entre os dois textos é abismal, mas são ambos muito bonitos.
Parabéns!
Bjca*
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